Um novo capítulo para a pesquisa clínica no Brasil
A pesquisa clínica no Brasil vive um momento de transformação profunda. De uma atividade considerada secundária dentro da estrutura hospitalar, ela passa a ser tratada como elemento estratégico para o avanço da ciência, melhoria da assistência e fortalecimento do ecossistema de saúde. Impulsionada por tecnologias digitais, novos modelos de governança e parcerias entre os setores público e privado, a pesquisa clínica ganha protagonismo e reposiciona o Brasil no cenário internacional da inovação em saúde.
O crescimento da pesquisa clínica no Brasil
Nos últimos anos, houve um aumento expressivo no número de estudos clínicos conduzidos no Brasil. O país viu crescer em mais de 30% os projetos com financiamento privado entre 2018 e 2023. Esse movimento evidencia o interesse da indústria farmacêutica e de empresas de biotecnologia em investir na produção científica nacional.
Além disso, o Brasil tem registrado avanços importantes na modernização dos estudos clínicos. Aproximadamente 15% dos estudos iniciados entre 2022 e 2024 adotaram estratégias descentralizadas, como visitas remotas, dispositivos vestíveis e plataformas de monitoramento, sinalizando uma nova era de pesquisa mais acessível e tecnológica.
A ciência integrada à prática hospitalar
A incorporação da pesquisa científica à rotina hospitalar tem sido um dos pilares mais sólidos dessa transformação. Hospitais têm criado centros dedicados exclusivamente à produção científica e à integração entre cuidado e inovação.
No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, por exemplo, são conduzidas pesquisas nas áreas mecanística, observacional, clínica e de implementação. Essa última, conhecida como ciência de implementação, é responsável por avaliar como os resultados das pesquisas podem ser incorporados de maneira eficaz à prática médica.
Alvaro Avezum, diretor de pesquisa da instituição, destaca que 70% das mortes precoces e eventos cardiovasculares no Brasil poderiam ser evitados com controle adequado de apenas 10 fatores de risco — dados oriundos de pesquisas nacionais publicadas em periódicos internacionais de alto impacto.
Governança hospitalar e acreditação como vetores de qualidade
Um fator fundamental para a integração da ciência à assistência é a governança hospitalar. A Organização Nacional de Acreditação (ONA) aponta que ambientes hospitalares mais organizados e com foco em resultados facilitam a adoção de protocolos baseados em evidências científicas. A acreditação estimula a construção de sistemas de qualidade contínua, favorecendo a prática da medicina baseada em evidências.
Isso se reflete diretamente na elaboração de protocolos clínicos embasados em estudos revisados por pares, que são posteriormente medidos por indicadores de qualidade. Esse ciclo fechado entre ciência, prática e avaliação fortalece o papel dos hospitais como centros de produção de conhecimento.
A força das tecnologias digitais na pesquisa clínica
A transformação digital é um dos maiores impulsionadores da pesquisa clínica no Brasil. Ferramentas de inteligência artificial (IA), machine learning, big data, IoT e sistemas de dados clínicos interoperáveis vêm otimizando desde o recrutamento de pacientes até a análise de resultados.
O Hospital de Amor, referência em oncologia, é um caso emblemático: com uma base de dados de mais de 300 mil amostras biológicas e informações clínicas de 60 mil indivíduos, a instituição utiliza IA para identificar possíveis candidatos para estudos clínicos. Esses dados são integrados aos sistemas hospitalares e alimentam pesquisas epidemiológicas e preditivas.
Outro exemplo importante é o uso de plataformas de e-consentimento, eCRFs (Formulários Eletrônicos de Captura de Dados) e monitoramento remoto, que reduzem o tempo, os custos e os riscos associados às pesquisas clínicas.
Parcerias público-privadas: motor da inovação científica
As parcerias público-privadas (PPPs) têm sido decisivas para a expansão da pesquisa clínica. Programas como o Proadi-SUS, coordenado pelo Ministério da Saúde, conectam hospitais de excelência com demandas reais do Sistema Único de Saúde (SUS). Desde sua criação, o programa já viabilizou centenas de projetos em áreas como pesquisa, gestão, capacitação e avaliação de tecnologias em saúde.
Entre os destaques estão:
-
Projeto CAR-T, que testa terapias celulares avançadas contra câncer;
-
Projeto Ártemis, voltado à medicina de precisão no tratamento de AVC;
-
Estudo Dica-HF, focado no controle da hipercolesterolemia familiar;
-
Projeto PegaSUS, que monitora resistência bacteriana;
-
Mapa Genoma Brasil, que cria um banco de dados genéticos sobre doenças crônicas.
Essas iniciativas mostram como a colaboração entre diferentes setores pode acelerar a inovação com impacto direto na vida dos pacientes.
O papel das operadoras de saúde na ciência
Operadoras têm criado institutos de pesquisa próprios, com parcerias com diversos centros. A intenção é sair do modelo reativo da assistência e investir em medicina de precisão, rastreio inteligente e terapias personalizadas.
Segundo Rodrigo Sardenberg, diretor do Instituto de Pesquisa da Hapvida, os resultados científicos são validados por análises de custo-efetividade e, após aprovação, são incorporados aos protocolos clínicos internos.
Marco Legal da Inovação e a Lei de Pesquisa Clínica
Do ponto de vista regulatório, dois marcos legais têm contribuído para a criação de um ambiente mais seguro e atrativo para a pesquisa clínica:
-
Marco Legal da Inovação (Lei nº 13.243/2016 e Decreto nº 9.283/2018): facilita a colaboração entre universidades, hospitais e empresas, permite o uso compartilhado de infraestrutura e possibilita a atuação de pesquisadores em projetos privados.
-
Lei de Pesquisa Clínica: aprovada recentemente após quase uma década de discussões, estabelece normas éticas e regulatórias modernas para estudos clínicos no Brasil. Sua regulamentação final ainda é aguardada, mas representa um avanço fundamental na atração de investimentos e consolidação do país como polo científico.
Desafios e próximos passos
Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta desafios para consolidar seu protagonismo na ciência médica:
-
Demora na regulamentação de leis importantes;
-
Necessidade de maior financiamento público à pesquisa;
-
Falta de uniformização nos sistemas de dados clínicos;
-
Carência de profissionais especializados em pesquisa.
Superar esses gargalos depende da articulação entre governos, universidades, setor privado e gestores hospitalares.
Conclusão
O Brasil está diante de uma oportunidade única de se posicionar como protagonista global na pesquisa clínica. Com um sistema de saúde universal, diversidade populacional, hospitais de excelência e um ecossistema de inovação crescente, o país reúne condições ímpares para liderar a produção científica voltada à saúde.
No entanto, essa liderança só será sustentável se houver compromisso contínuo com a integração entre ciência e assistência, investimentos em infraestrutura, valorização dos pesquisadores e políticas públicas que incentivem a inovação de forma estratégica.
Como afirma Alvaro Avezum: “Não basta dizer que se faz pesquisa. É preciso garantir qualidade, impacto clínico e comprometimento institucional”. Com essa visão, o Brasil dá passos firmes rumo à medicina do futuro — mais eficiente, personalizada e baseada em evidências.
Fontes:
ANVISA;
Plataforma Lattes;
Gov.br;
ABRACRO;
INTERFARMA;
ONA;
Hospital Alemão Oswaldo Cruz;
Hospital do Amor;
Hospital Moinhos de Vento;
Hospital Israelita Albert Einstein;
FAPESP;
Hapvida;
Revista Saúde Digital Brasil.